Luis Borges Gouveia
Professor Catedrático, Universidade Fernando Pessoa
As Instituições de Ensino Superior (IES) têm, nestes últimos anos, sido sujeitas a diversos questionamentos sobre o seu papel e sobre os seus objetivos máximos. Ainda mais, num contexto de uma sociedade que tem sido transformada pela globalização, pela sociedade da informação e do conhecimento e pelas questões da sustentabilidade, em especial as associadas ao ambiente e às alterações climáticas.
Numa frase de conhecimento comum e proferida por muitos, somos muitas vezes confrontados com os limites das IES e na sua capacidade de resposta aos anseios da sociedade atual: “a universidade baseia-se essencialmente em um modelo do Séc. XIX, com professores do Séc. XX e com alunos do Séc. XXI”. De facto, verifica-se que as respostas que o ensino superior proporciona parecem, muitas vezes, desadequadas do contexto moderno e das questões que se relacionam com o desenvolvimento e a partilha de valores. Talvez mais humanistas, mas certamente mais multiculturais, menos homogéneas e mais diversificadas, logo de maior complexidade e menos capazes de gerar consensos e aceitação global. Em complemento, tal torna mais clara a sensação de não existir uma visão única ou predominante do que é (ou deve ser) uma IES para os nossos tempos. Com base na repartição de poder global que parece estar a ditar alterações de quem são os referenciais dominantes, torna-se mais complexa a nossa relação com o conhecimento, com as questões associadas com religião, com as de ideologia política e mesmo, de conceção de mundo, por via de uma tradição histórica alternativa e oriunda da raiz histórica da nossa própria civilização – que tem dificuldade de manter a pluralidade de opinião e de posições, numa discussão aberta e tolerante, que foi o referencial da academia.
Tal confronta a civilização ocidental, que desenvolveu e exportou a noção de IES à escala global, mas que hoje em dia se vê confrontada com uma concorrência crescente em quantidade e qualidade à sua própria oferta – ainda que inspirada nos seus próprios modelos. Mais ainda, verifica-se que essa mesma oferta (de todos) se encontra cada vez em maior crise, quer na sua sustentabilidade económica, quer na sua capacidade de atrair recursos humanos (os melhores alunos) para produzir o melhor conhecimento. Chegados a janeiro de 2020, verificamos uma universidade em crise que luta por se organizar de modo a manter o seu papel na sociedade como a casa do conhecimento e o produtor de inovação onde se espera o débito constante de conhecimento com valor social. Cada vez mais acossada por organizações alternativas que desafiam parte do seu papel e o tornam mais cercado, as IES vão degradando a capacidade de capturar as melhores mentes e os maiores recursos e, por essa via, aumentando a dificuldade de justificar as suas estruturas. Este acumulado resulta de um legado que foi reforçado, em muitas das IES, no Séc. XIX e se consolidou no Séc. XX, enquanto casa do conhecimento e local de preparação dos recursos humanos mais avançados e primeiro guardião de renovação de uma comunidade e seu maior produtor de conhecimento.
Ora, é precisamente esta hegemonia que é colocada em causa pelo digital e pelo crescente impacto das tecnologias de informação e comunicação, pelo seu uso e exploração em todos os setores de atividade. Inicialmente, criando as condições de imporem uma alternativa digital a contrapartes analógicas, constituindo ferramentas para operação. Posteriormente, proporcionando a digitalização de atividades e o desenvolvimento de processos que concorriam e complementavam o analógico com um potencial do digital, o que aumentava significativamente o potencial de lidar com tempo e com o espaço, reinventado o que se pode realizar a todo o tempo e em qualquer lugar, mas também de acordo com novas formas de mediação digitais, independentemente do tempo e espaço onde ocorre essa mediação. Neste ponto, algumas tensões começam a ocorrer e a forma como a sala de aula e os espaços académicos, na sua dimensão física eram colocados em causa, começou a ser mais visível: quem paga, qual o seu uso e como os manter, como atrair e povoar esses espaços emerge como desafios não estratégicos, mas de sobrevivência. Agora, com maior concorrência de mais IES e também das suas extensões digitais, reforçado por um número significativo de outras organizações que possuem interesses e motivações diferentes, os desafios são multiplicados.
A última grande vaga imposta pelo digital foi a da transformação digital, agora com propostas e formas de mediação já desgarradas e sem contraparte analógica e que colocam em causa ainda mais as IES tradicionais que tem de responder também tendo em conta a necessidade de respeitar a sua história e de lidar com os efeitos disruptivos do digital e da transformação digital nos seus próprios legados e organização. A hora de aula, a disciplina, a especialidade, a organização tradicional das IES parece estar agora a ser mais desafiada, sendo que os modelos de legado tem dificuldade em realizar a mudança que se impõe também a professores, de um modo bem maior que aos alunos. Estes últimos, bem melhor preparados para a aceitar e operar num contexto de transformação digital, em especial, disponíveis para mudanças significativas de fazer, em relação ao passado. A inércia da legado e o peso das IES mais tradicionais tem forçado a manter práticas e a impedir muitas das mudanças que se adivinham como necessárias também para preparar os recursos humanos que respondam às necessidades e aos desafios do tempo que vivemos.
É neste contexto que aparece a doença Covid-19, uma pandemia, logo de escala global e que constitui um elemento disruptivo para a nossa sociedade. Poderemos afirmar que neste contexto se trata de um acelerador, já que torna possível a passagem para uma mediação mais digital na relação de toda a comunidade académica, mesmo no seu ponto mais sensível e imutável, que é o da sala de aula. Após março de 2020, a mediação digital com uso mais ou menos integrado de meios digitais, proporcionados por plataformas digitais e sistemas de videoconferência síncrona, tem possibilitado a aprendizagem da mediação digital, ainda que mesmo assim, sem mudanças significativas nas práticas académicas. No entanto, o que foi feito foi a digitalização de práticas. Mas tal, por si, já constitui uma revolução, ao permitir que a comunidade académica viabilize o uso do digital, embora ainda não desfrutando da sua plenitude, pois o que se trata, no essencial, é a passagem de práticas, estratégias e conteúdos do analógico, transpondo de modo urgente processos (com um mínimo de alteração). Nestes últimos meses, a digitalização tem sido progressiva, adivinhando-se aprendizagens e discussões associadas com a motivação, o envolvimento, as estratégias pedagógicas e as questões de contexto associadas com o acesso, oportunidades e compreensão de conteúdos e atividades pelos alunos. Adicionalmente o significativo aumento da intensidade de trabalho que cabe a todos os intervenientes da comunidade educativa também sugere reavaliações do tradicional tempo gora de aula. Em complemento, aparecem questões como a avaliação e outras que exigem abordagens alternativas e não apenas a aprendizagem de novas ferramentas como nos processos de digitalização. Estamos pois preparados perceber a transformação digital e esse caminho não vai permitir retorno, mesmo que em breve, nos iremos encontrar novamente nos espaços e nas salas de aulas das IES tradicionais.
Está assim aberta a porta para novas práticas que vão derrubar os atrasos de resposta das IES ao tempo que vivemos e que irão questionar de forma mais visível o tempo de aula, o uso da sala de aula e muitos dos modelos que tomamos como seguros, das últimas décadas da vida académica. Este será o tempo do Pós Covid e estes serão os seus desafios e mudanças anunciadas.